POR FLÁVIO PRADO (*)
Sem alarde, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar nº 17/2022, batizado de “Código de Defesa do Pagador de Impostos”. Esse nome esconde a natureza perversa do texto, que pretende premiar os sonegadores de tributos com benefícios inimagináveis em qualquer país desenvolvido.
Uma das medidas previstas do PL retira da Receita Federal a possibilidade de analisar a movimentação financeira dos contribuintes, na contramão das práticas recomendadas pela OCDE (o chamado “clube dos países ricos”).
Outra medida no texto é o impedimento de que a Receita Federal ou as Secretarias de Fazenda dos Estados baixem a inscrição de empresas. Esse tipo de ação é tomada quando uma empresa fantasma, sem capacidade operacional, é usada para emissão de notas fiscais fraudulentas ou para movimentar recursos ilícitos (não por acaso, é o tipo de empresa muito usada em esquemas de corrupção e sonegação).
O PL prevê que a baixa seria realizada somente após decisão definitiva do CARF; mas não menciona que a decisão em questão demora em média 10 anos, período em que os sonegadores e outros criminosos de colarinho branco poderão continuar movimentando livremente seus recursos ilícitos.
Esses são apenas dois exemplos de trechos do texto que seriam absolutamente prejudiciais à fiscalização tributária. Mas, além disso, caso o texto estivesse em vigor, seriam completamente inviabilizadas diversas fiscalizações que ocasionaram a descoberta de grandes esquemas de corrupção, sonegação e lavagem de dinheiro.
Se o projeto estivesse em vigor, seriam inviabilizadas várias fiscalizações que descobriram grandes esquemas de corrupção, sonegação e lavagem de dinheiro
Como exemplo, a operação Saldo Negativo, cuja 1ª fase foi deflagrada em novembro de 2019 e a 2ª fase concluída em dezembro de 2021, desarticulou uma organização criminosa que vendeu falsos créditos tributários para pelo menos 4,5 mil empresas de 600 municípios de todos os estados do Brasil. O trabalho, realizado por Auditores de 2 equipes especializadas, a redução em fraudes deste tipo evitou R$ 1,64 bilhões de prejuízo aos cofres públicos. Além disso, foram bloqueados aproximadamente R$ 70 milhões dos criminosos.
Outro exemplo é a operação Expresso, deflagrada em março de 2021, que desarticulou uma organização criminosa que emitiu mais de R$ 6 bilhões em notas frias no setor cafeeiro. Além da recuperação dos aproximadamente centenas de milhões de reais sonegados, a atuação da RFB em parceria com órgãos de persecução penal evitou sonegação estimada em cerca de R$ 400 milhões de em 2021.
Já na operação Descarte, já foram encerrados aproximadamente 400 procedimentos fiscais, entre fiscalizações e diligências, com lançamentos que superam R$ 1 bilhão de reais. O trabalho prossegue com cerca de 100 procedimentos fiscais em andamento e possibilidades de desdobramentos. A organização criminosa identificada no trabalho de Auditores-Fiscais signatários envolvia, além de sonegação de tributos, desvio de recursos públicos, corrupção e lavagem de dinheiro.
Texto pretende premiar sonegadores de tributos com benefícios inimagináveis em qualquer país desenvolvido
Esses são apenas alguns de dezenas de exemplos de ações similares. Além de responsabilizar tributariamente dezenas de reais beneficiários dos recursos desviados, o trabalho realizado pelos Auditores-Fiscais ensejou investigações criminais por crimes contra a ordem tributária, lavagem de dinheiro, falsidade material e ideológica e organização criminosa, entre outros. Em resumo, esse é o tipo de trabalho que o Projeto de Lei tenta evitar que ocorra.
Mais do que isso, o texto proposto prevê a criação de responsabilidades funcionais adicionais para as autoridades das administrações tributárias. Ocorre que os Auditores já estão sujeitos a todas as demais obrigações legais de servidores públicos (tais como a Lei de Improbidade Administrativa e da Lei de Abuso de Autoridade), além de poderem ser objeto de um tipo penal próprio que já existe há décadas, o chamado excesso de exação.
Nos últimos anos, a Receita Federal, apesar das limitações orçamentárias e de pessoal, tem feito esforços para facilitar a vida dos bons contribuintes, promovendo ações de conformidade e auto regularização. Por outro lado, realiza ações para responsabilizar sonegadores contumazes e fraudadores por suas obrigações tributárias. O PL acaba por facilitar enormemente a vida dos maus contribuintes, colocando peso adicional no bolso dos bons contribuintes e dos mais pobres, que não tem como escapar da tributação.
O projeto facilita a vida dos maus contribuintes, colocando peso adicional no bolso dos mais pobres
E não há contrapartida para os bons contribuintes no texto proposto no PL: os bons contribuintes continuarão tendo os mesmos deveres, e talvez pagando uma fatia maior de tributos. No médio e longo prazo, o texto favorece a concorrência desleal, já que haverá uma “corrida para o fundo do poço”, em que empresas concorrentes tentarão de tudo para pagar cada vez menos tributos, certos de que a Receita Federal não poderá mais alcançá-las.
Ressaltamos que a sonegação é uma outra faceta de corrupção: no crime de corrupção, o dinheiro público é desviado, sendo vertido para algum beneficiário privado. A sonegação tem o mesmo efeito, ao evitar que o Tesouro receba os recursos que precisa para que a população tenha direito à saúde, segurança e educação, em benefício do sonegador. E é somente ao sonegador que interessa a aprovação desse texto do Projeto de Lei.
(*) Auditor-Fiscal da Receita Federal e vice-presidente da Delegacia Sindical de Santos do Sindifisco Nacional (Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal). Artigo publicado, originalmente, no jornal A Tribuna, de Santos