POR VICTOR GRINBAUM (*)
Ele foi o parente mais velho com quem convivi. Numa infância onde alguns deles tinham nascido ainda nos 800, tio Aníbal bateu todos os recordes, pois nossos nascimentos se deram com quase um século de diferença. Mas para explicar como conheci parente tão antigo terei que lhes contar a história de meu avô materno, o meu avô brasileiro e cristão.
Ele se chamava Jorge e nasceu no Rio, na Tijuca, no mesmo sobrado onde seus pais tinham uma mercearia, na esquina de três ruas: as atuais General Roca, Bom Pastor e Dr. Renato Rocco. Não sei que naquele tempo elas já tinham esses nomes. Não importa. O fato é que ele tinha outros três irmãos (Maria de Lourdes, Wilson e Ayrton) e era filho de um imigrante português chamado (adivinhem só!) Manoel Affonso Maduro e de uma petropolitana de família tradicional da cidade serrana chamada Hercília da Cruz Loureiro. Desse meu bisavô português eu não sei nada além do nome, do rosto que me chegou através de uma única fotografia, e de sua causa mortis: tuberculose. Morreu quando meu avô era ainda muito criança e deixou a mercearia sob os cuidados da minha bisavó. Mas um cunhado dela deu um jeito de lhe passar a perna e tomou a mercearia para si. Logo depois ela também se descobriu tuberculosa e morreu. E as quatro crianças se espalharam pelo mundo. Meu avô passou por dois orfanatos: um num subúrbio do Rio que agora esqueci qual era e outro na Ilha de Paquetá: o “Preventório Rainha Dona Amélia”, que existe até hoje. Mas num determinado momento ele e um primo foram resgatados e levados para a casa de uma tia, que na verdade era uma prima distante chamada Romilda.
Desse meu bisavô português eu não sei nada além do nome, do rosto que me chegou através de uma única fotografia, e de sua causa mortis: tuberculose
Essa Tia Romilda propiciou um lar para os quatro irmãos e o primo, tirando-os de um inevitável caminho de marginalidade. Todos cresceram sob a tutela dessa senhora solteirona, evangélica e espartana nos costumes, que morava numa casinha muito antiga e simples do Catumbi e que se recusava a ter qualquer luxo em casa. Geladeira, por exemplo, só entrou lá quando ela já andava pelos 70 anos. E mesmo com todos adultos, casados e encaminhados, a rigidez da Tia Romilda era tamanha que nenhum deles sequer ousava fumar na frente dela.
Tia Romilda se divertia de outras formas: tocando órgão nos cultos de uma igreja evangélica do Rio Comprido ou cuidando dos túmulos da família no Cemitério de Petrópolis. E todo 2 de novembro, Dia de Finados, quem tinha que levá-la pro alto da serra para percorrer os jazigos de toda parentela falecida era meu avô.
É aí que o Tio Aníbal entra na minha vida.
Um dia, numa dessas excursões fúnebres, Tia Romilda soube que o túmulo que continha os restos mortais de seu cunhado, um certo Anníbal Manoel (grafia da época) necessitava de obras. Imediatamente procurou a administração do cemitério para providenciar o reparo, e procederam com a exumação do morador do jazigo. O coveiro abriu a tampa e acessou os ossos do tal cunhado, que morrera ainda muito jovem, no distante ano de 1899, pouco depois de se casar com uma irmã (ou prima, não sei ao certo) da Tia Romilda, que se chamava Sophia. O homem ajuntou a ossada numa sacola de supermercado daquelas de papel e entregou-a à Tia Romilda. Que a repassou ao meu avô: “Guarda isso”.
O coveiro abriu a tampa e acessou os ossos do tal cunhado, que morrera ainda muito jovem, no distante ano de 1899, pouco depois de se casar com uma irmã (ou prima, não sei ao certo) da Tia Romilda, que se chamava Sophia
Meu avô era perito papiloscopista da Polícia Civil. Defuntos dos mais variados estados de conservação não lhe eram estranhos. E ele guardou o Tio Aníbal onde podia. No caso, no pequeno espaço que separa o banco traseiro da caixa do motor do seu Fusca branco 77 com volante esportivo. Desceram a serra os três a bordo: Jorge, Romilda e Aníbal, enquanto o túmulo era consertado. Acontece que só há um Dia de Finados por ano. E que no ano seguinte aconteceu alguma coisa que eles não voltaram a Petrópolis. Nem no ano seguinte. E nem no seguinte…
E Tio Aníbal passou a ser um morador permanente da traseira do Fusca. Para onde meu avô fosse Tio Aníbal ia junto. E para mim era a maior diversão andar no carro de meu avô e ir brincando com aquela ossada amarelecida e meio farelenta. Nos anos 80 ninguém se preocupava com normas de segurança, e eu ia ajoelhado no banco de trás, com os braços mergulhados no tal vão, revirando os ossos. O Fusca parava no sinal e eu gostava de ir assustando os passageiros dos carros parados ao lado. Alguém reparava naquele menino muito lourinho com cara de anjinho, lhe dava tchau, e eu puxava o crânio do Tio Aníbal: TCHÁÁÁÁÁÁÁÁ!!! A expressão de terror dos passageiros do carro ao lado era a coisa mais engraçada do mundo!
Nos anos 80 ninguém se preocupava com normas de segurança, e eu ia ajoelhado no banco de trás, com os braços mergulhados no tal vão, revirando os ossos. O Fusca parava no sinal e eu gostava de ir assustando os passageiros dos carros parados ao lado
Quem não gostava daquilo era minha avó, que quando percebia que eu estava brincando com o Tio Aníbal dava altos chiliques. Sua irmã mais velha tinha verdadeiros ataques de pânico. Mas meu avô se limitava a dar mais uma tragada em seu Hollywood vermelho (ele só dizia “ôliúde”).
Não sei quantos anos o Tio Aníbal morou no Fusca. Sei que um dia ele finalmente voltou a Petrópolis. Acho que foi quando a Tia Sophia finalmente morreu, quase centenária, e aproveitaram o ensejo para reunir o casal separado há tantas décadas. E sei que quando conto aos amigos que eu brincava com a ossada de um tio (ou primo, ou sei lá que diabos ele era!) falecido ainda no século 19, muitos não acreditavam.
Até que uns poucos anos atrás estava passando um domingo em Petrópolis com amigos. Já tínhamos visitado todos os museus, almoçado um ótimo arroz de pato, e ao término da refeição veio a pergunta: “E agora, o que vamos fazer?” Não tive dúvidas: “Agora vamos visitar o Tio Aníbal!”
E fomos mesmo! Tocamos pro cemitério e encontrei o administrador: “Estou atrás do túmulo de um tal Aníbal Loureiro, mas o senhor dificilmente saberá…” O homem nem me deixou terminar a frase: “Loureiro? Os Loureiros todos estão bem na entrada do cemitério! Família famosa daqui da cidade”. E ali eu soube que meus antepassados eram “gente bem” da Petrópolis do século 19. Encontrei não só o túmulo do Tio Aníbal – ou melhor, Annibal Manoel da Cruz Loureiro na ortografia d’antanho – como também o imponente jazigo de meus trisavós, com direito a medalhão de mármore italiano com o rosto do avô do meu avô esculpido. Bonito mesmo!
E ali eu soube que meus antepassados eram “gente bem” da Petrópolis do século 19. Encontrei não só o túmulo do Tio Aníbal – ou melhor, Annibal Manoel da Cruz Loureiro na ortografia d’antanho – como também o imponente jazigo de meus trisavós, com direito a medalhão de mármore italiano com o rosto do avô do meu avô esculpido
Depois daquilo passei a pesquisar esse ramo da minha árvore genealógica. Descobri onde meus bisavós foram enterrados, no Rio. E que esses Cruz Loureiro eram muito enfronhados na política de Petrópolis. Meu trisavô chegou a ser vereador da cidade nos anos 1880 e dono de uma confeitaria chamada “Casa Loureiro”. Achei fotos deles nos arquivos do Museu Imperial. Inclusive do Tio Aníbal, que era mesmo muito jovem, louro, magro e com um bigode de pontas enceradas. Tinha aquele olhar triste que todos exibiam nas fotografias de antigamente. Morreu com menos de 26 anos de idade em decorrência de “angina diphterica” (é o que consta na Gazeta de Petrópolis de 08/06/1899), recém-casado e sem filhos.
(*) É jornalista e escritor