BRASÍLIA
Em uma decisão intempestiva, o Tribunal de Contas da União (TCU) arquivou processo em que o órgão apurava, há mais de 13 anos, a venda de uma fazenda da família Bumlai para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Mato Grosso do Sul.
Suspeita de superfaturamento, a transação foi concretizada em 28 de outubro de 2005, no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por R$ 20.920.783,58. O pagamento foi feito por meio de ordens bancárias e Títulos da Dívida Agrária (TDA).
A Fazenda São Gabriel pertencia aos filhos do pecuarista José Carlos Bumlai, amigo do presidente Lula e condenado na Lava Jato por gestão fraudulenta e corrupção passiva por quitar dívidas do PT. O valor, segundo laudos apresentados pelo Ministério Público Federal, foi superfaturado em R$ 7.565.636,77.
A decisão pelo arquivamento da ação, tomada em 14 de agosto passado, sem julgamento do mérito, causou surpresa porque o tribunal investigava o caso desde 2011 e tinha chegado à conclusão de que a operação causou, à época, prejuízo de pelo menos R$ 7 milhões aos cofres públicos. Atualizados até novembro de 2022, o montante devido pelos filhos de Bumlai soma R$ R$ 15.642.510,00.
A decisão pelo arquivamento da ação, tomada em 14 de agosto passado, sem julgamento do mérito, causou surpresa porque o tribunal investigava o caso desde 2011
Decisões do TCU de 2011 para cá foram todas no sentido de condenar os donos da fazenda à devolução do valor supostamente superfaturado, além do pagamento de multa e envio do processo à Procuradoria da República em Mato Grosso do Sul para eventuais medidas penais.
No Acórdão 2890, de 27 de novembro de 2019, foram responsabilizados solidariamente pelo “superfaturamento na compra do imóvel rural pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária Fernando de Barros Bumlai, Guilherme de Barros Costa Marques Bumlai, Maurício de Barros Bumlai e Cristiane de Barros Costa Marques Bumlai Pagnoncelli”.
O relator atual do processo, ministro Marcos Bemquerer Costa, afirma que o suposto sobrepreço foi apontado por laudo pericial do Ministério Público Federal (MPF), que avaliou o imóvel em R$ 13.355.146,81. Já o laudo do Incra, de 30/11/2004 e 9/12/2004, apontou que a Fazenda São Gabriel estava avaliada em R$ 20.920.783,58, resultando em uma diferença de R$ 7.565.636,77.
O julgamento
Em julgamento realizado em 14 de agosto deste ano, o tribunal, por maioria, aprovou o arquivamento do processo, sem fato novo que pudesse gerar apreciação pelo plenário da Corte de Contas. O relator do caso manteve os principais pontos de decisões anteriores, como as contidas no Acórdão 2890/2019, sob a relatoria do ministro André de Carvalho.
Além de determinar que os irmãos devolvessem mais de R$ 15 milhões recebidos indevidamente na venda da fazenda ao Incra, o ministro aplicou multa de R$ 200 mil a cada um dos quatro Bumlai.
Em julgamento realizado em 14 de agosto deste ano, o tribunal aprovou o arquivamento do processo, sem fato novo que pudesse gerar apreciação pelo plenário da Corte de Contas
Também condenou Ismael Sandoval Abrahão e Celso Benedito Torres de Souza, que assinaram os laudos para o Incra, ao pagamento de multa de R$ 150 mil cada, além de multar os dirigentes do Incra à época do caso, Francisco Sérgio de Lima, Jânio Coelho da Silveira, Valdir Perius e Luiz Carlos Bonelli em R$ 100 mil cada.
O parecer, no entanto, foi derrubado por cinco dos oito ministros presentes à sessão. Eles foram favoráveis ao relatório do revisor, ministro Jhonatan de Jesus, o primeiro a votar contrariamente ao relator. O regulamento interno do TCU prevê que, em caso de divergência, o primeiro juiz que der voto contrário ao relatório seguirá como revisor.
Para derrubar o voto do relator, o revisor Jhonatan de Jesus não se aprofundou no caso, limitando-se a desconsiderar o trabalho do Ministério Público Federal e a relativizar a atuação do próprio TCU. Jesus desqualificou o Laudo Pericial 18/2010, do Ministério Público Federal, o qual não considerou suficiente para embasar a condenação proposta.
Destacou que “há muitos aspectos ainda a esclarecer e que, no caso concreto, a atuação direta deste Tribunal não se justifica, pois as medidas de ressarcimento estão sendo bem conduzidas por órgãos preparados técnica e juridicamente para o debate, na ação de ressarcimento em curso no Poder Judiciário”.
Para derrubar o voto do relator, o revisor Jhonatan de Jesus não se aprofundou no caso, limitando-se a desconsiderar o trabalho do Ministério Público Federal e a minimizar a atuação do próprio TCU
“Aliado a esse aspecto, a própria possibilidade de atuação desta Corte está prejudicada pela incidência da prescrição, nos termos já explicitados neste voto. Por ambos os motivos, concluo pela inviabilidade do prosseguimento desta TCE, devendo o processo ser arquivado por falta de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular”, conclui o revisor.
Todos os votos favoráveis ao arquivamento do caso foram de ministros nomeados pelo Congresso, geralmente senador e deputado: Augusto Nardes, Bruno Dantas, Vital do Rêgo, Antonio Anastasia e o relator-revisor Jhonatan de Jesus.
Foram contrários ao arquivamento e a manutenção do parecer do relator, coincidentemente, os ministros de carreira Walton Alencar e Benjamin Zymler, além de Marcos Bemquerer.
Suspeitas
Em 2010, órgãos de controle da União começaram a investigar a venda da área. Com base em um laudo encomendado pelo Ministério Público Federal em Corumbá, concluiu-se que houve superfaturamento de R$ 7.565.636,77 na venda do imóvel e a denúncia foi encaminhada ao Tribunal de Contas da União.
De acordo com o parecer técnico, a área valeria R$ 13.355.146,81, em contraponto à avaliação dada pelo Laudo nº 7/2005 do Incra, de R$ 20.920.783,58. Desses, R$ 16.611.431,28 foram pela terra nua e R$ 4.309.352,30 pelas benfeitorias indenizáveis.
Com base em um laudo encomendado pelo Ministério Público Federal em Corumbá, concluiu-se que houve superfaturamento de R$ 7.565.636,77 na venda do imóvel
A Fazenda São Gabriel originou-se da união de sete áreas, no total de 4.598,73 hectares, compradas pelos irmãos Bumlai entre 1997 e 2000, por R$ 4.108.725,40, segundo o TCU. No período de cinco a oito anos, a área foi vendida por valor cinco vezes maior e hoje abriga um assentamento com 274 famílias.
Entre as irregularidades constatadas pelo tribunal na avaliação do imóvel, estão a classificação pouco precisa dos solos, cálculo superestimado do custo de formação das pastagens, utilização de uma área em hectares superior à do imóvel e inclusão indevida de benfeitorias inexistentes no imóvel.
Valor quitado
Em 14 de junho de 2017, o TCU determinou que o Incra no Estado e a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) suspendessem o procedimento de resgate dos Títulos da Dívida Agrária (TDA) emitidos, mas ainda não resgatados, para pagamento da Fazenda São Gabriel em Corumbá. A decisão, no entanto, chegou tardiamente.
No curso das investigações, o tribunal descobriu que o valor da negociação tinha sido pago integralmente, de duas formas. O pagamento das benfeitorias foi feito imediatamente à conclusão do negócio, por meio de ordens bancárias, em 01/11/2005, no valor de R$ R$ 4.309.352,30. O resgate dos TDA ocorreu em duas datas distintas: 01/10/2010 e 01/10/2015, no valor total de R$ 16,6 milhões, na Caixa de Campo Grande (MS), referente ao valor da terra nua.
No curso das investigações, o tribunal descobriu que o valor da negociação tinha sido pago integralmente
Em novembro de 2019, segundo o Acórdão 2890/2019, o TCU encaminhou alerta aos ex-donos da fazenda para que evitassem “ocultar” ou “dilapidar o patrimônio”. Qualquer tentativa nesse sentindo, de acordo com o tribunal, estaria evidenciada “a nefasta prática de fraude contra credores ou de fraude à execução, podendo ser anulada ou tornada ineficaz pelo poder público”.
O relator do processo sugeriu ainda, em 2019, que a unidade técnica do Tribunal em Mato Grosso do Sul se manifestasse sobre a indisponibilidade de bens dos filhos de Bumlai até que o julgamento do mérito, decidindo se houve ou não prejuízo à União na compra da Fazenda São Gabriel para a reforma agrária.
Lula e Bumlai
Bumlai e Lula se conheceram na campanha presidencial de 2002, apresentado pelo então governador Zeca do PT, quando o petista esteve em Mato Grosso do Sul para gravar cenas sobre as atividades do campo em uma das fazendas do pecuarista.
Os negócios da dupla ganharam evidência com a chegada de Lula à Presidência em 2003. A Operação Lava Jato investigou vários crimes encontrados com as digitais de ambos. Lula e Bumlai foram presos em períodos diferentes.
Os negócios da dupla ganharam evidência com a chegada de Lula à Presidência em 2003
Outra movimentação que causou estranheza aos órgãos de investigação foram as transferências feitas pelos filhos Bumlai para a conta do pai, no valor de R$ 4.067.400,00, assim que eles receberam o pagamento das benfeitorias, de R$ 4.309.352,30, em 01/11/2005. Os órgãos de controle queriam saber o destino desse dinheiro a partir de Bumlai.
Com o arquivamento do processo pelo TCU, aprovado em agosto, o rastreamento do dinheiro que saiu das contas de Bumlai fica prejudicado. Além disso, a Operação Lava Jato foi encerrada e algumas de suas decisões anuladas pelo Supremo Tribunal Federal, como as condenações do presidente Lula, cujos processos transitaram em julgado nas três instâncias do Judiciário.
Outro lado
O MS em Brasília tentou falar com ao menos um dos irmãos Bumlai para comentar a decisão do TCU de arquivar o processo, mas não conseguiu. O espaço está aberto para manifestação da família.
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