POR ALEXSANDRO NOGUEIRA (*)
Há uma cena desconfortável e, por isso mesmo, reveladora. No filme Mefisto, de István Szabó. um ator alemão, vaidoso e encantado com a própria aura, aceita lamber as botas do regime nazista em troca de prestígio e contratos.
Sua arte, diz ele, é neutra. Mas nada é neutro quando se abraça a ideia dos governantes. Sobretudo poderes que cafetinam a miséria e a servidão.
Aviso aos simpatizantes: a história não costuma ser impiedosa com os cúmplices do silêncio.
Na década de 1950, o lituano Czesław Miłosz, Nobel de Literatura, escreveu “A Mente Cativa”, não como panfleto, mas como um diagnóstico.
A história não costuma ser impiedosa com os cúmplices do silêncio
O escritor explica, com frieza, por que tantos intelectuais, poetas, atores e músicos se entregam com alegria ao jugo dos governantes, tornando-se servis, aderentes, acríticos.
Não é só medo do esquecimento coletivo, é por vaidade, além da bajulação que governos parecem oferecer aos artistas medíocres: o palco, a ilusão de relevância e o aplauso dos falsos e hipócritas.
Pensei nisso quando li, com constrangimento e um pouco de náusea, o episódio em que o vocalista da banda Ira! (ironias da vida) humilhou um espectador que pediu anistia aos presos do 8 de janeiro.
Mas o cantor Nasi preferiu impor um grito ao invés de argumentar. Usou o microfone como porrete, e ali, diante do público, encarnou o velho clichê do artista brasileiro: o justiceiro armado e a superioridade moral. Ódio do bem?
Mas o cantor Nasi preferiu impor um grito ao invés de argumentar. Usou o microfone como porrete, e ali, diante do público
Não importa aqui o mérito da anistia, aliás tema legítimo de debate. O que me incomoda é a atitude. A reação impensada, o fígado no lugar do cérebro.
É o gosto pela repressão, pela execração pública, pela certeza de que há um lado certo da história (e esse lado, claro, é sempre o deles, ou seja, aquele que converge com as nossas relações de afeto, sem se importar que o outro discordante exista).
Intelectuais e artistas brasileiros há décadas se comportam como casta diferenciada, convencida de que suas opiniões vêm com selo de pureza. Mas, como ensinou Milosz, é precisamente essa certeza que os torna tão perigosos e cada vez mais irrelevantes. Os donos da virtude no fundo são fanáticos que acreditam que suas causas estão no mercado para salvar os pecadores.
Talvez falte a eles o que sobrava em George Orwell: a capacidade de duvidar da própria opinião e da própria tribo. De denunciar o arbítrio, mesmo quando praticado pelos seus. O artista que se coloca a serviço de uma causa — qualquer causa — deixa de ser livre. Torna-se funcionário, servo, acólito. E há algo de servidão na forma como muitos hoje se ajoelham diante dos patrões do Governo Federal.
Intelectuais e artistas brasileiros há décadas se comportam como casta diferenciada, convencida de que suas opiniões vêm com selo de pureza
A arte torna-se decadente e anódina na medida em que a verba pública compra corações e mentes sem a mínima complacência.
A história já viu isso. Viu poetas soviéticos louvando Stalin. Viu cineastas chineses cantando Mao. Viu músicos cubanos transformados em porta-vozes da prisão política.
E agora vemos, no Brasil, artistas promovendo o linchamento moral de quem ousa pensar diferente. Tudo com uma panca de heroísmo e rebeldia. Mas rebeldia patrocinada por verbas públicas é só bajulação com pose. Triste isso.
Não me espanta que artistas escolham o lado errado da história. A maioria sempre escolheu. Espanta-me que ainda se surpreendam quando a plateia os abandona. O público não é burro. Pode ser enganado por um tempo, mas não o tempo todo.
A arte verdadeira não mora em slogans, em chavões (ah, o amor venceu o ódio), mas na inquietação, na dúvida e na liberdade.
E liberdade de opinião e escolha, como sabemos, é o que menos interessa aos que gritam pelo bem comum com a mente cativa.
(*) É jornalista, músico e escritor