De Brasília
Transferida para a iniciativa privada em julho de 1996 pelo prazo de 30 anos, a antiga Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, hoje Ferrovia Malha Oeste, que liga Mairinque, em São Paulo, a Corumbá, em Mato Grosso do Sul, agoniza após 25 anos de concessão.
A constatação está em relatório de uma auditoria realizada em 2020 pelo Tribunal de Contas da União (TCU) no contrato de concessão com a Rumo Malha Oeste S.A, cuja fiscalização está sob a responsabilidade da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
“A Concessionária não conseguiu cumprir as metas de produção pactuadas na maior parte dos anos de concessão. Com efeito, sequer as metas definidas para os primeiros anos foram atingidas. Isso indica que um dos objetivos pretendidos, de aumento da produção e da participação do modal ferroviário na região não se concretizou”, denuncia o TCU.
No documento a que o MS em Brasília teve acesso, referente ao Acórdão 1422/2021, o tribunal faz duras críticas ao trabalho da ANTT, criada em 2001 para acompanhar a operação, manutenção e investimentos em rodovias e ferrovias do país.
Na auditoria, TCU encontrou três irregularidades graves na fiscalização da Malha Oeste pela ANTT: não garantir a prestação de serviço adequado pela concessionária; deixar de cobrar o cumprimento das demandas existentes na área de abrangência da concessão; e não atuar de forma efetiva no sentido de impedir a degradação das condições operacionais da linha férrea.
“Exceção do requisito ‘segurança’, a ANTT não possui rotinas aptas a avaliar a adequação do serviço prestado pelas concessionárias de transporte ferroviário, no que tange às suas dimensões de regularidade, generalidade, modicidade, eficiência”, reforça o relator do processo, ministro Raimundo Carreiro.
Carreiro considera “grave” o fato de haver indícios de que a concessionária da Malha Oeste tem reduzido a velocidade das composições em trechos de manutenção deficiente, como forma de minimizar riscos à segurança operacional, ao invés de realizar as intervenções necessárias para a conservação da via férrea.
Ferrovia precária
A própria ANTT, segundo o relator, aponta que a manutenção deficiente levou à precarização dos serviços de transporte na ferrovia, o que diminuiu o número de usuários e de cargas, hoje restritos a três produtos: minério, celulose e aço.
O problema de degradação das condições operacionais da Malha Oeste levou à abertura, em 2020, de um processo administrativo que pode resultar no encerramento da concessão da Rumo Malha Oeste S.A.
“Uma das consequências do abandono da ferrovia é a sobrecarga das estradas de Mato Grosso do Sul e São Paulo com cargas inadequadas para o transporte por rodovias em longas distâncias, como o minério, os graneis vegetais e a celulose, encarecendo os custos finais dos produtos e acelerando a decomposição do revestimento asfáltico”, diz trecho do relatório do TCU.
A baixa qualidade dos serviços prestados na Malha Oeste, de acordo com o TCU, foi reconhecida pelos usuários, ex-usuários e associações de produtores ouvidos na auditoria que, além de problemas operacionais da via, relataram falhas na continuidade do transporte por frequentes e demoradas interrupções do tráfego.
Acidentes
O TCU teve acesso a um relatório de inspeção da Agência, no período de 2015 a 2019, em que somente no trecho Bauru-Três Lagoas foram registrados 47 acidentes, sendo 23 descarrilamentos, 16 abalroamentos, três atropelamentos e cinco incêndios.
“Números elevados frente à baixa densidade de tráfego. O relatório mostra que 82,6% dos descarrilamentos foram causados por problemas na via permanente e que a concessionária impôs uma redução de velocidade de 20 km/h no trecho para mitigar riscos, ao invés de providenciar a adequada manutenção da linha”, aponta o relator.
O tribunal também encontrou diversos autos de infração motivados pela ausência de comunicação de acidentes por parte da concessionária. De acordo com a documentação apresentada pela ANTT, foram realizadas 216 autuações da Rumo Malha Oeste entre 2011 e 2020, muitas em decorrência da falta de comunicação de acidentes.
“Bem se vê que, pelo menos na última década, há vários indícios de subnotificação de acidentes ferroviários na Malha Oeste. Tal situação é extremamente séria, pois põe em suspeita a confiabilidade das estatísticas de segurança da ferrovia, apuradas pela Agência, dificultando a atuação preventiva e corretiva sobre as falhas”, acrescenta o relator.
Números maquiados
No relatório, Carreiro reforça desconfiança dos auditores do tribunal em relação aos resultados apurados pela Agência no requisito segurança, em razão de haver fortes indícios de maquiagem nos números de acidentes ocorridos na ferrovia.
“A principal causa que identifico para essa situação é a falta de maiores consequências para a concessionária que omite informações sobre sinistros, quando ela se beneficia da subnotificação”, diz.
Em sua defesa, a ANTT argumentou que os contratos originais de concessão não seriam suficientes para se obter prestação adequada do serviço e que eles só definiam metas de produção e de segurança. O TCU, no entanto, não concordou com as explicações, afirmando que a concessão da Malha Oeste foi assinada já na vigência da Lei 8.987/1995.
“A lei é clara a respeito da necessidade de atendimento às condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação do serviço de transporte e modicidade das tarifas, por parte do concessionário”, rechaça o ministro.
A concessão
A antiga Estrada de Ferro Noroeste do Brasil foi a primeira ferrovia a ser concedida à iniciativa privada no processo de desestatização da Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), cujo leilão público ocorreu em 5 de março de 1996, por meio do Decreto de 26 de junho de 1996. A Malha Oeste iniciou a operação dos serviços em 1º/7/1996 pelo prazo de 30 anos.
Com 1.973 quilômetros de extensão, a Malha Oeste corta os Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, onde aparece como a principal alternativa ferroviária para o transporte de produtos, como minério, celulose e grãos.
Além disso, tem potencial estratégico, pois a Malha Oeste permite a integração com países da América do Sul por meio de portos fluviais, além da própria ferrovia, que chega a localidades fronteiriças com a Bolívia e o Paraguai.
Procurada, a concessionária Rumo Malha Oeste divulgou a seguinte nota:
Nota
A concessionária informa que não é parte do processo em trâmite no TCU. Com relação à Malha Oeste, informa que logo no primeiro ano de concessão ocorreu evento fora do seu controle e risco que ocasionou importante desequilíbrio econômico e financeiro do contrato, já reconhecido judicialmente. Tal fato afeta o projeto desde então.
Em razão deste cenário, a Malha Oeste apresentou requerimento de relicitação que foi aprovado em dezembro de 2020 pelo conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), com base na Lei nº 13.448/2017 e no Decreto nº 9.957/2019.
A relicitação abre caminho para que o poder concedente promova nova licitação, com um novo concessionário assumindo a malha, ou mesmo para que o formato dessa concessão possa ser remodelado pelo governo.
Em decorrência da adesão à relicitação, em maio de 2021 foi assinado um Termo Aditivo ao Contrato de Concessão da Malha Oeste, estabelecendo as condições transitórias de gestão do ativo até que seja realizado o novo certame licitatório.
É importante ressaltar que desde que a Rumo assumiu a concessão da Malha Oeste, em 2015, foram investidos, só na via permanente, mais de R$ 150 milhões, com o objetivo de garantir a segurança da prestação do serviço concedido, bem como o atingimento das metas pactuadas com a ANTT e o atendimento adequado aos usuários da malha concedida.